Missa do Vaqueiro, manifestação que ocorre em Serrita, Pernambuco, mantém ligados os senhores das boiadas de ontem e hoje
EI, GADO, OI! O aboio é um tipo de canto para incitar, aquietar e apaziguar o gado no pasto, principalmente na Caatinga. Também conduz o rebanho ou a rês desgarrada para o curral. O vaqueiro nordestino, por exemplo, utiliza o aboiar para chamar ou mesmo orientar o companheiro perdido em alguma serra e nos tabuleiros da Caatinga repletos de espinhos. O vaqueiro mais famoso e destemido do Nordeste, “aboiador” de primeira, foi Raimundo Jacó, que passou a vida tangendo gado para seus patrões. Gostava de se embrenhar, muitas vezes a galope, pela Caatinga traiçoeira atrás de boi xucro. Quanto mais fechada a vegetação, mais ele gostava. Na maioria das vezes, montava em pelo e conhecia cada cabeça de rês sob sua responsabilidade. Sabia onde o animal comia, bebia, dormia e gostava de ficar.
Contratados da mesma fazenda, Raimundo Jacó trabalhava para o patrão;
Miguel Lopes, seu companheiro, para a patroa. Em uma última jornada
pela Caatinga, no sítio Lages, no município de Serrita, em Pernambuco,
os dois vaqueiros foram atrás de uma novilha desgarrada do rebanho da
patroa. Com experiência de sobra, em pouco tempo Jacó descobriu o
paradeiro da novilha, amarrou-a em um pedaço de pau e ficou à sombra de
um ingazeiro, fumando, com seu fiel cachorro ao lado. Ao avistá-lo,
Miguel Lopes ficou muito constrangido. Cheio de mágoa e inveja, na
primeira oportunidade e desatenção do companheiro, pegou uma pedra e o
acertou na cabeça, matando o vaqueiro ali mesmo onde estava. Voltou
sozinho com a novilha para os patrões e disse não ter visto Raimundo
Jacó.
Passaram-se três dias e urubus já anunciavam a tragédia. Alguns vaqueiros foram ao local e encontraram o corpo de Jacó ao lado de seu cavalo e do cachorro, que o protegeu contra o ataque das aves. Enterraram o homem ali mesmo. O cão foi encontrado, dias depois, morto sobre o túmulo de seu dono. O cavalo do vaqueiro, desnorteado, passou vários dias relinchando no pasto.
Passados 17 anos da morte de Raimundo Jacó, em 1970, foi rezada no sítio Lages, em pleno sertão, a primeira missa, justa homenagem ao vaqueiro por iniciativa do padre João Câncio com apoio de Luiz Gonzaga, o “rei do baião”, e Pedro Bandeira, violeiro e repentista cearense.
“Ao ser ordenado padre, João veio para a paróquia de Serrita. Por ser
novo na cidade, tinha muita dificuldade de se aproximar da comunidade.
Então descobriu como se integrar. Começou a fazer exatamente o que as
pessoas gostavam, ou seja, o pastoreio do gado”, conta Helena Câncio,
professora e produtora cultural, viúva do padre João. Após conhecer a
história de Jacó, “que dizem ter sido assassinado, porém sem provas”,
ressalta Helena, o religioso encantou-se. Em conversa com Luiz Gonzaga
resolveu organizar um evento que se estenderia a todos os vaqueiros do
Nordeste. “Foi então realizada a primeira missa, com formato próprio e
linguagem específica. O propósito era exaltar a figura do vaqueiro, sem
fugir, é claro, da religiosidade. Vaqueiros chegavam, orgulhosos, com
suas indumentárias de couro e cavalos bem arreados para a celebração”,
conta a professora.
Além da missa no domingo pela manhã, o ponto forte é a “pega do boi” sábado à tarde, na Caatinga, como demonstração da valentia e destreza de centenas de vaqueiros. A coragem, temperada com prêmios em dinheiro, faz com que os participantes se embrenhem no tabuleiro. Os garranchos de pau seco e plantas da Caatinga, quase todas cheias de espinhos, a exemplo de quebra-facas, catingueiras, imbuzeiros, chique-chiques e unhas-de-gato, são obstáculos corriqueiros e presentes no dia a dia. A vestimenta para enfrentar a Caatinga brava é feita de couro de bode, cru e curtido.
Um “terno”, como é chamado, compõe-se de chapéu de couro,
guarda-peito, gibão (camisa do vaqueiro), par de luvas, perneira e
sapato (ou bota). Antigamente, usavam-se as alpercatas e também o
chinelo do vaqueiro, fechado somente na frente, além de uma perneira de
proteção, também conhecida como “perneira-puxa”. “Cada lugar tem o seu
terno diferente e só de a gente bater o olho, já sabe de onde é o
vaqueiro. O nosso, por exemplo, é mais pesado e o couro, mais grosso. O
importante é que somos todos unidos, independentemente da região”,
afirma Valmir Galaça, vaqueiro de Floresta (PE), participante da missa
há dez anos.
Os vaqueiros começam a chegar ao parque, local da festa, na
sexta-feira à tarde. Interagem, divertem-se e preparam-se para o grande
momento: a missa de domingo. “Aqui tem muita muié bonita, mas tem também
muita muié feia. Essa missa é de alegria e também de tristeza. De
tristeza, porque aqui a gente vem cumprir nossa sina, de relembrar a
morte de Raimundo Jacó. Eu tô aqui, todo arremendado, veio, mas tô na
luita. A mió coisa do mundo é correr atrás de gado, namorá muié bonita e
pagá com muito obrigado”, conta Antonio Ernesto, 72 anos, vaqueiro
“mestre” que participa desde a primeira missa.
Nas primeiras horas do grande e último dia, vaqueiros queimados de
sol preparam-se para a celebração. A um quilômetro, na estrada que dá
acesso ao parque, arranjam-se em duas filas indianas. À frente da
comitiva vai Tiago Câncio (filho de Helena e do padre João); ao seu
lado, Vicente Jacó, filho do vaqueiro. Começam a cavalgar em direção ao
local da festa e, em pouco tempo, estão todos reunidos em uma grande
confraternização. O tilintar dos chocalhos ecoa por todo o parque e o
padre, com chapéu de couro, declama: “A terra é quente de fé, o sol é a
luz de Deus. Os homens, filhos da terra, o céu a miragem azul, o
horizonte a cinza da natureza. O vento seca a face do mundo, a presença
do tempo é sertão, o canto é divino. Jesus no céu, nas pedras, na
Caatinga, em tudo e em todos. Onipresente, nordestino, vaqueiro,
sertanejo, Jesus sertanejo, a Caatinga primeira, que abre a cena da
missa, que o tempo criou: a Missa do Vaqueiro.”
O ponto culminante da celebração é o ofertório, momento em que
vaqueiros tarimbados na lida com o gado, representando toda a classe e
montados em seus cavalos, entregam no altar o que de mais sagrado
possuem: suas roupas de trabalho, além de apetrechos da montaria. No
anfiteatro a céu aberto, em formato de ferradura, um poeta canta em
repente cada entrega realizada. “Um momento também muito forte é a
comunhão. O vaqueiro, no dia a dia, leva para o campo seu alimento, que é
basicamente farinha, rapadura, carne-de-sol e queijo coalho. Na missa, a
comunhão é feita com esses alimentos. No fim, eles descem de seus
cavalos, dividem o alimento e comem”, diz Helena. A trilha sonora,
durante todo o culto, tem composições do poeta Janduhy Finizola, a Reza
do Sol, executada por vários artistas.
Onde fica
Serrita, no sertão de Pernambuco, a 562 quilômetros de Recife, é
conhecida como “Capital do Vaqueiro”. O sítio Lages, local do evento,
fica a 40 quilômetros de Serrita (estrada de asfalto). A festa é
patrocinada pelo governo de Pernambuco e tem apoio da prefeitura de
Serrita. É considerada o segundo maior evento turístico do Estado e, em
julho de 2010, completou 40 anos. Na semana que antecede a missa, são
realizados os mais diversos festejos folclóricos: “pega de boi” na
Caatinga, vaquejada, feira com comidas típicas, shows e forró
pé-de-serra. A animação corre solta durante as noites de sexta e sábado.
O evento é organizado todos os anos, sempre na terceira semana de
julho, com entrada gratuita. É ideal ligar para confirmar a data e
agendar com antecedência a hospedagem. O telefone do Centro Cultural do
Vaqueiro, que organiza o evento, é (87) 3882-1489.
Onde se hospedar
A opção de hospedagem é em Salgueiro, cidade a 30 quilômetros de
Serrita (e a 70 do sítio Lages). A dica é o Salgueiro Plaza, telefone
(87) 3871-1367, site salgueiroplaza.com.br. Na cidade, há outras
alternativas. O parque conta com área de camping gratuito, com
sanitários, e espaço para trailer e motor-home.
Fonte: Revista Terra da Gente
Fotos e texto: João Prudente
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