EM SERRITA ELE ERA
O GRÃO-SENHOR DE TUDO E DE TODOS
A fase do “CORONELISMO” na vida nordestina chega ao fim:
esboroou-se à investida das estradas, dos jornais, do rádio e, ultimamente, da
televisão. O voto secreto caracterizou o princípio da derrocada. Mas, os
“coronéis” deixaram a sua marca inconfundível na paisagem político-social no
Nordeste – através de um longo patriarcalismo tão áspero como doce –, pois,
enquanto castigava e exigia, também favorecia, ajudava e até acumpliciava. Eram
chefes de “clãs” que transcendiam os limites dos laços de sangue até às
próprias fronteiras dos municípios, arrebanhando fidelidades na base do temor,
da amizade ou do interesse. Tudo isso se traduzia na aritmética eleitoral – pois
o “coronel” sempre governou com os favores dos governos estaduais, raramente se
rebelando. O preço de sangue foi sempre alto, e a vida, sempre perigosa. Há
dias em Pernambuco, morreu a bala, CHICO ROMÃO, o último dos grandes coronéis nordestinos.
Outros deixaram à política. Mas, altivo, continua a tradição o “Coronel” Chico
Heráclio, atuante, alegre, perspicaz. Nesta reportagem Marcus Vinícius Vilaça
antecipa um estudo em preparo para o Instituto Joaquim Nabuco de Pesquisas
Sociais do Recife.
Coronel Chico Heráclio conversando com seu eleitor |
O BRECHAMENTO do interior pernambucano pela estrada
pavimentada, rádio, caminhão, energia de Paulo Afonso, ginásio, crédito rural,
está matando os “coronéis”, ainda que um deles diga:
“Prestigio de Coronel é como grama, quanto mais se corta,
mais nasce”.
Nesta fase crepuscular dos “coronéis”, o autor da reportagem
está trabalhando em livro – donde tira alguns “flashs” de antecipação para “O
CRUZEIRO” – visando a lhes fixar as figuras principais como o velho Chico
Heráclio, talvez dos mais expressivos tipos de dominador de vontades, vivendo a
apenas oitenta quilômetros do Recife e numa cidade importante do Estado. É a
maior resistência coronelística ao populismo, à verdade eleitoral, à
independência política, à pressão de comerciantes e industriais do novorriquismo
sedento de poder eleitoral. Resistência em tudo. Seu tempo social é outro. Não tem rádio em casa. Nem refrigerador.
Nem telefone. Mas como os antigos senhores de engenho, orgulhosos do cavalo,
considerado como elemento de mensuração de bens e prestígio, manda comprar um
Chevrolet Impala, modelo 1965, dizendo para o neto que faz a transação e
habituado à compra de carros americanos:
“Só quero se vier encaixotado, carro é como mulher, só
presta virgem”.
De virgens, tantas já ex-virgens, vive a sua casa cheia, em
forma suavizada de harém, às vezes com três ou quatro, todas levadas, menos, é
claro, pelos seus quase oitenta anos do que pelas possibilidades financeiras
que são enormes. Só uma propriedade, carié, no sertão brabo de Pernambuco, tem 52.000 ha. Afora as
outras onze. Das cabeças de gado, nem se fala. São tantas quanto outrora
somavam a dos eleitores.
Houve época em que foi da dominação ao poder, isso
principalmente no governo de Agamenon Magalhães. Nada se fez na região sem a
sua anuência ou pelo menos audiência. Foi tamanha a força também antes, que
tentou ditar normas ao Governador Barbosa Lima Sobrinho, obrigando-o a lhe
repelir insinuações, em frase logo tornada célebre:
“Não será do Coronel Chico Heráclio que eu tenha de receber
lição de ética política”.
Nesse tempo chegou, inclusive, a nomear professor
catedrático, aliás, nome ilustre, para escola hoje fazendo parte da
Universidade de Recife.
Carrega consigo característica muito da família: não
hierarquiza. Tanto faz um doutor como um “cabra”. Seu grupamento político não
tem seleções nem altezas, por isso arrosta com a oposição sistemática da
população mais esclarecida da cidade. Basta seu eleitorado nos distritos, agora
se emancipando, com o que terá fatalmente destroçada a sua invencibilidade em
Limoeiro, um município de cem mil habitantes e com perto de vinte mil
eleitores.
Do jeito que não escolhe amigos, age com o vocabulário. A
incontinência verbal é completa. E não há caso de terras, herança, briga entre
marido e mulher, defloramento que, chegando para soluções, não seja
rasgadamente narrado na frente de todos, sob o bombardeio impenitente de suas
perguntas sutis e maliciosas, às vezes vai mais longe:
Exige que gestos e posições sejam repetidos, no
enriquecimento das descrições.
Em proclamações dirigidas aos correligionários, do que muito
se utiliza, criando mesmo no meio um apelo desmedido a tal forma de
proselitismo e aliciamento, não tem sido menor o tom desabotoado das palavras e
conceitos. Da boa medida disso um seu boletim de após eleição municipal, onde
desanca opositores políticos, inapelavelmente transformados em inimigos
pessoais:
“Qual foi o mal que fiz ao meu compadre R... A... que
deflorou uma cunhada tendo ela dado à luz no Sítio Bananeiras e que chegando em
minha casa com uma criança nos braços, tive que ampara-la e também esconder o
referido R ...para não ser assassinado. Qual foi a recompensa? Ficar contra
mim. Quem é o safado? Cada um que julgue”.
Tais atitudes têm sofrido fortes repulsa de muitos, bem
assim o amparo (já foi mais amplo) que dá vez em quando, a criminosos. Nunca a
ladrões. E Chico Heráclio distingue criminoso de assassino:
“Assassino mata para roubar ou por perversidade, enquanto
criminoso é o que lava a honra sua ou da família”.
Mas a grande especialidade de Chico é a política. Depois
dela é que vem o negócio de terras, de que se contam cousas pitorescas. Muito
hábil comprando propriedades por quadros, só as vende por hectares. Em cada cem
quadros há cento e vinte hectares... E justifica:
“Se eu não fizesse assim, menino estava dando bom dia a tôco
e fazendo careta a cego”.
Amigo dedicado – não encontrando limites para servir, tantas
ocasiões valendo-se da coragem pessoal incontrastável – sabe ser o inimigo
hermético, sem suavidades. A sua força política (tem um filho, Heráclito Moraes
do Rêgo – deputado federal pela terceira vez e um – Francisco de Moraes
Heráclio, Francisquinho – estadual na quarta legislatura), ainda hoje
ponderável, tem sido dada, vale dizer mais por qualidades – de liderança e astúcia,
sobretudo – do que pelos defeitos – de coação e atemorização – e só a presença
de novas conotações civilizadoras na vida comunitária, a que não se adaptou, o
tem passado para trás, numa ação inevitável.
Revista O Cruzeiro de 25 de julho de 1964 |
Já CHICO ROMÃO morreu sem acusar a menor quebra no seu
soberano mandonismo, mesmo porque SERRITA, um pequenino município – fazenda em
fim de caminho sertanejo, ainda não recebeu nada de sopro moderno. Não assiste
a nenhum trânsito e é uma cidade intransitiva ao lado de ser uma cidadela.
Isolada fechada ao “coronel” e à sua família bem dizer a
única de lá, como um só – o clá Sampaio – é o dono de tudo: casas, vontades,
minúsculo comércio, agricultura de feijão e algumas várzeas de arroz.
O “CORONEL” Chico Romão conservava costumes patriarcais,
reunindo toda a família ao redor da grande mesa de refeição de sua casa em
Serrita.
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Só o Crime de Apipucos (perto do solar de Gilberto Freyre,
no Recife), quando foi assassinado o odontolando Esdras Lucena, com acusação
geral ao “Coronel” Chico e posterior absolvição em júri memorável, tornou
personalidade extra-sertão. O aparato desmesurado para capturá-lo, que armou o
Coronel Roberto de Pessoa, Secretário de Segurança do Governador Agamenon,
fê-lo um líder em torno do qual se uniram a família, “os coronéis” ainda que
discretamente e por autodefesa, na constatação de que sua intocabilidade estava
desmoralizada, e grande parte do PSD, à frente Etelvino Lins.
Chico era um encantado pelo chefe Agamenon apesar de todas
as imensas dificuldades por que passou. (“Fugi a pedido de Maroca (esposa), mas
lhe dizendo que iria fazer a primeira covardia de minha vida, eu tava doido
para resistir; para trocar bala”), inclusive tendo que correr para o Piauí (uns
dizem que de batina), onde, mais tarde, aliado a atividade de venda de couros, tornou-se
abastado proprietário de fazendas de babaçu. Enquanto isso para o aliado dos
momentos difíceis tinha um julgamento severo:
“Dr. Etelvino acabou com o PSD”. E a censura vinha sempre
com uma palavra de respeito a Cordeiro de Farias, que manobrou os “coronéis”
como quis, granjeando-lhes a maior simpatia.
Homem duro, valente, CHICO ROMÃO foi um ídolo da família e a
recíproca e verdadeira. Por isso não é de estranhar o amparo que deu a todos e
se compreende o grau de horror com que encaram a Dercílio Brito, seu matador.
Ultimamente seus dengos estavam concentrados em Marlene, garotinha que criava
nesta sua fase mais de avô, ou bisavô, do que pai.
Em frente à casa-grande de Serrita, a segunda esposa do
Coronel Chico Romão, Neuma e a filhinha menor Marlene
|
Laços de parentesco ligaram-no a dois ex-governadores de
Pernambuco: um, Cid Sampaio, seu primo; o outro, Miguel Arraes, primo da
primeira mulher Maria Maia Arraes (Maroca). Para ela, construiu a casa que leva
o nome de Vila Maria, onde viveu toda vida. E ai, também viveu com a segunda
esposa D. Neuma, professora no Crato. Chama-se a casa, em todos os arredores,
de “O Chalé”. Ali se dirimiram dúvidas, resolveram-se casos difíceis, realmente
elegeram-se os candidatos que o eleitorados depois referendava monótona e
invariavelmente nas urnas.
Depois do almoço, o “Coronel” Chico Romão, fumava calmamente
o seu charuto
|
Acostumou-se desde cedo, desde quando estudava na “Seleta” e
aprendia a reza do fecha-corpo com a preta Joana (reza que não serviu contra o
revólver de Dercílio), a comandar – e o fez até o fim – sem admitir restrições.
Dai o terem liquidado. Não suportou as cócegas que Dercílio lhe fizera desde o
episódio em que dissentiu do PSD para apoiar Cid, o parente udenista e por
desavenças sobre o cartório de Serrita que foi colocado em seu lugar à cunhada
Nair. E Chico Romão caiu varado de bala, não em Serrita, mas em Salgueiro,
cidade maior do sertão e nunca rendida, apesar da vizinhança, aos tentáculos do
seu poderio.
O enterro foi impressionante de comparecimento e
demonstrações coletivas de dor. Com ele se sepultava o último remanescente
daquilo que foi o forte colégio de “CORONÉIS” do cariri cearense, que teve como
expoente máximo, Floro Bartolomeu.
Fonte: Revista O Cruzeiro – edição de 25 de julho de 1964
Texto de Marcus Vinícios Vilaça
Fotos de João Rodrigues
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